Ruínas recompostas e pós-memória nos romances de Luis S. Krausz

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    Recomposed ruins and post-memory in novels by Luis S. Krausz

    ABSTRACT: In this article, we present an analysis of the novels Desterro: memórias em ruínas (“Exile: memories in ruins”) e Deserto (“Desert”), by Jewish-Brazilian writer Luis S. Krausz, from the perspective of the concept of post-memory, as defined by Marianne Hirsch. Family memory presents itself as creative material for his literary production since he belongs to the third generation of Jewish immigrants in Brazil. Going by the definition of the so-called “filiation novel”, Krausz represents the intergenerational narratives and memories he had contact with during his childhood and adolescence in his work. Those are affective memories that were transmitted to him, but which, once assimilated, became post-memory, since his relationship with his grandparents' past does not happen in the same way. Thus, an imaginative investment takes place in order to record his memorializing experience.

    Keywords: Luis S. Krausz, Post-memory, Family memory, Filiation novel

     

    Ruines recomposées et post-mémoire dans les romans de Luis S. Krausz

    RÉSUMÉ : Dans cet article, nous présentons l'analyse du roman Desterro: memória em ruínas et le Deserto, de l'écrivain judéo-brésilien Luis S. Krausz, du point de vue du concept de postmémoire, de Marianne Hirsch. La mémoire intergénérationnelle se présente comme un matériau créatif pour la production littéraire de cet écrivain, puisqu'il appartient à la troisième génération d'immigrants juifs au Brésil. Par le genre roman d'affiliation, Krausz représente les récits et les mémoires intergénérationnelles avec lesquels il a eu des contacts pendant son enfance et son adolescence. Ce sont des mémoires affectives qui lui ont été transmises, mais une fois assimilées, elles sont devenues postmémoires, puisque la relation avec le passé des grands-parents ne se passe pas de la même manière. Ainsi, un investissement imaginatif a lieu pour enregistrer son expérience mémorialiste.

    Mots-clés : Luis S. Krausz, Postmémoire, Mémoire familiale, Romain d’affiliation

    Ruínas recompostas e pós-memória
    nos romances de Luis S. Krausz

    RESUMO: Neste artigo, apresenta-se a análise dos romances Desterro: memórias em ruínas e Deserto, do escritor judeu-brasileiro Luis S. Krausz, pela perspectiva do conceito de pós-memória, de Marianne Hirsch. A memória intergeracional se apresenta como material criativo para a produção literária desse escritor, visto que ele pertence à terceira geração de judeus imigrantes no Brasil. Pelo gênero romance de filiação, Krausz representa as narrativas e as memórias intergeracionais com as quais teve contato durante sua infância e adolescência. São memórias afetivas que lhe foram transmitidas, mas, uma vez assimiladas, se tornaram pós-memória, pois a sua relação com o passado dos avós não se dá da mesma forma. Assim ocorre um investimento imaginativo para registrar a sua experiência memorialística.

    Palavras-chave: Luis S. Krausz, Pós-memória, Memória familiar, Romance de filiação

    Simone LUCIANO VARGAS

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul

     

    Introdução

    Embora os antepassados de Krausz e muitos dos judeus mencionados não sejam sobreviventes da Shoah, o trauma do deslocamento se mantém. Nessa perspectiva, pode-se estabelecer uma relação com o conceito de pós-memória proposto por Marianne Hirsch[4]:

    No Brasil, tem-se consolidado uma literatura contemporânea, de caráter judaico, produzida pelas segunda e terceira gerações. A produção artística desses escritores se fundamenta nas memórias de seus antepassados; ou seja, são filhos ou netos de imigrantes judeus que se instalaram no Brasil no período do entreguerras e após a Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido, esses romances são de uma geração pós-memorial, visto que a emigração com o intuito de sobrevivência e a não total integração ao país de acolhida perpetuam uma consciência exílica nos imigrantes. Esta, por sua vez, segundo Nouss, trata-se de « […] uma ferida que a experiência exílica partilha com todo o fenômeno traumático[2] » (Nouss 2015: 74)[3].

    O termo pós-memória descreve a relação que a geração «seguinte» mantém com o trauma cultural, coletivo e pessoal vivido por aqueles que a precederam. Ele diz respeito, portanto, às experiências das quais essa geração só pode se «lembrar» mediante histórias, imagens e comportamentos em meio aos quais ela cresceu. Mas essas experiências lhe foram transmitidas de maneira tão profunda e afetiva que parecem constituir sua própria memória. A relação da pós-memória com o passado é, na realidade, mediada não por lembranças, mas projeções, criações e investimentos imaginativos (Hirsch 2012: 5).

    No seu caso, o convívio com os avós paternos propiciou-lhe o conhecimento de uma memória cultural em que a tradição judaica lhe foi transmitida, mas principalmente a cultura austro-alemã do tempo dos impérios (Le Rider 2013) do século XIX, bastante valorizada por sua família. Sendo judeu, o autor não poderia deixar de fazer menção, em seus romances, aos traumas daqueles que sobreviveram à Shoah. Nesse sentido, a migração, o exílio e a catástrofe contribuíram para um sentimento de perda, ausência e nostalgia que perpassa sua escritura.

    Os romances de Krausz, por se tratar de narrativas que abordam histórias de seus familiares, pessoas comuns que nada fizeram que marcasse a História com a sua passagem, e da coletividade, da qual sua família fazia parte, podem ser considerados pertencentes ao gênero do romance familiar (Viart 2008). A narrativa de filiação é híbrida, pois, por meio da reconstrução, mistura ficção com fatos passíveis de serem confirmados. Sua dimensão factual e íntima a aproxima do gênero autobiográfico; contudo, os romances em análise se acomodam mal à estrutura convencional, pois lhes faltam a linearidade cronológica e a causalidade. A partir de fragmentos da memória familiar e suas próprias lembranças, Krausz reconstrói a vida de seus antepassados, por isso, a narrativa autoficcional é a forma que melhor se ajusta a seus romances, também contribui para que estabeleça um estilo próprio.

    Num primeiro momento, discorre-se sobre a importância da transmissão das experiências para os judeus e as relações entre o romance de filiação e a geração pós-memorial. Nos romances, existe uma profusão de personagens que representam a constelação de identidades judaicas, no entanto, será dado destaque a alguns personagens que têm elos familiares com o protagonista.

    Finalmente, com base nos romances de Krausz, será feita uma análise das estratégias narrativas de representação da memória familiar e de sua transmissão às gerações futuras, de modo que forneçam elementos para a constituição de uma estética pós-memorial de escritores judeus-brasileiros.

    É a partir da escrita de sua própria experiência, como descendente de judeus sobreviventes da Segunda Guerra, que Hirsch cria o conceito de geração da pós-memória. Para ela, a partir dos estudos de Jan e Aleida Assmann sobre memória cultural, « A estrutura da pós-memória esclarece como as múltiplas rupturas e quebras radicais introduzidas por trauma e catástrofe influenciam a herança intra, inter e transgeracional» (Hirsch 2012: 31). A memória cultural sofre uma ruptura quando ocorre eventos traumáticos, de modo que o vínculo das gerações futuras com sua herança cultural ocorre diretamente com o passado, mediado por aqueles que o vivenciaram. Ele recebe a memória dos antepassados por meio de histórias, objetos ou fotografias, assim, a representação dessa pós-memória na literatura se dá por rastros dispersos no tecido narrativo. Como representante da terceira geração de judeus da diáspora brasileira, Luis S. Krausz, judeu-brasileiro, desponta como escritor literário desde 2011, tendo recebido alguns prêmios importantes no cenário brasileiro. A escrita ficcional de Krausz é fundamentada em memórias a respeito de sua infância, adolescência e vida adulta. No entanto, essa memória é entrecruzada com a história de vida dos seus antepassados e de outros imigrantes da diáspora judaica. Sua produção artística pode ser considerada como sendo de uma geração pós-memorial, o que se mostra relevante para a análise de sua produção autoficcional. É com base nesses conceitos que neste artigo propõe-se uma análise dos romances Desterro: memórias em ruínas (2011) e Deserto (2013) desse escritor.

    Ruínas recompostas

    Assim, para os judeus, como o escritor Elie Wiesel afirma: « Não transmitir uma experiência é traí-la; é isso que a tradição judaica nos ensina. » (Wiesel 1994: 23). Nessa perspectiva, pode-se considerar a preservação da memória familiar e coletiva a partir da transmissão da memória às gerações futuras, como a formação consciente de comunidades de memória. No entanto, o processo de transmissão e assimilação das experiências passadas se misturam com as experiências do tempo presente, ocorrendo sua transformação, além do patrimônio cultural acumulado (Pickering e Emily Keightley 2013).

    Na qualidade de portador dessas memórias, Krausz as registra em seus romances. Dessa maneira, elas deixam de ser memória comunicativa — biográfica e factual, transmitida por meio de uma testemunha adulta a seus descendentes por três a quatro gerações — para se tornarem cultural; isto é, tornaram-se memória institucionalizada — ou de arquivo — porque agora está registrada em livros, mas também poderia ser por rituais, comemorações ou performances (Hirsch 2012: 32). Nessa perspectiva, é possível estabelecer a relação de que as memórias do escritor passam a ser não somente intergeracionais, pois lhe foram transmitidas pelos avós, como também transgeracionais, posto que — transformadas em romances — são acessíveis a seus contemporâneos e às gerações futuras. Portanto, Krausz, pela escrita ficcional, contribui para a formação da comunidade de memória da diáspora brasileira, em especial, a que se produziu no estado de São Paulo, Brasil.

    Para executar um projeto de preservação de suas origens, ele se utiliza do gênero romance de filiação, visto que seus antepassados eram pessoas comuns, embora tivessem contribuído para o desenvolvimento da sociedade judaica em São Paulo. Os romances de filiação compreendem histórias de pessoas que, por não serem personalidades históricas ou celebridades, não se têm registros de suas memórias (Viart 2008). No entanto, importam para aqueles com quem conviveram, em geral, pessoas com as quais possuíam algum parentesco ou amizade: « Ele sabe muito bem, sendo aquele que compartilhou alguns anos com o falecido, que [este] teve emoções, sentimentos, desejos, projetos, fracassos ou frustrações. Do qual ele é, o que permaneceu, o herdeiro. Portanto, ele deve, por sua vez, estar situado nessa história da qual é o produto[5]» (Viart 2008: 80).

    No entanto, por ser fundamentado em memórias familiares, esse gênero literário configura a reconstrução da memória, daquilo que o autor consegue se lembrar; ou seja, ele busca recompor as memórias em ruínas da sua família e de outros. Tendo uma produção artística de caráter eminentemente autoficcional, ele emprega estratégias narrativas para tecer histórias de vida: a sua, a de seus familiares e a de outros judeus.

    A tradição judaica tem por característica a transmissão de sua memória coletiva às gerações futuras. Assim, acontecimentos importantes que ocorreram com os hebreus na Antiguidade são ainda hoje celebrados, independentemente da sua natureza. Isso se deve pelo judaísmo considerá-los mandamentos — o registro em manuscritos bíblicos lhes dá um caráter sagrado — para que as próximas gerações de judeus não esqueçam os livramentos e castigos do Deus de Israel (Yerushalmi 2002). Por essa razão, é possível afirmar que o culto à memória acompanha o povo judeu, a ponto de ter se tornado uma característica de sua identidade.

    Desterro: memórias em ruínas

    É nessa memória nostálgica que os jardins lhe fazem recordar os eventos de sua infância junto aos avós paternos, já falecidos. Assim, fragmentos de memória de eventos e hábitos da família lhe afloram à mente e se misturam com o tempo presente enquanto o personagem deambula pela cidade.

    Como a estrutura do romance se dá por meio do fluxo de memórias, ele não segue uma linearidade ou causalidade. As lembranças avultam à mente do personagem em momentos que ele se encontra no carro, ou no ônibus, ou sentado enquanto aprecia a vista da cidade do alto de um mirante. São momentos de introspecção em que o corpo se mantém passivo, mas os pensamentos se deslocam de uma lembrança a outra, no tempo. Nessas ocasiões, o narrador apresenta-se acometido de profunda melancolia:

    O romance Desterro: memórias em ruínas inicia com o protagonista passeando pelo bairro de Sumaré, onde há vários casarões com jardins floridos que se assemelham à casa dos avós que se localizava na cidade de Campos de Jordão, no estado de São Paulo. Com a especulação imobiliária e a urbanização da cidade, esse casarão foi demolido.

    Ali, sentado no mirante da rua Mococa, eu avistava a cidade, embaixo, e era como se visse essas coisas desaparecidas passando, levadas pelo fluxo pachorrento do rio Pinheiros, como num interminável cortejo fúnebre: cheiros, lembranças, palavras que iam para o leito morto do rio enquanto os ratos cruzavam as avenidas engorduradas da cidade nova e os perdulários erigiam seus castelos (Krausz 2011: 62).

    Com o desenvolvimento da cidade, os casarões são substituídos por novas construções, em geral arranha-céus, e tudo aquilo que fazia sentido para os antigos habitantes, já envelhecidos ou falecidos, tornou-se obsoleto. As famílias iam se desfazendo de móveis, bibliotecas, hábitos dos antepassados que já não cabiam no dinamismo da cidade. Dessa forma, os pertences dos avós paternos acabaram num depósito de um novo prédio no bairro Nova São Paulo, na cidade de São Paulo, o qual, o protagonista, proprietário de um dos apartamentos, visitava a contragosto:

    [...] me dirigia, de automóvel, para aquele bairro de desconsolo, [...] sobretudo, para revirar o armário, do qual emergiam, às vezes, pequenos objetos vindos da casa em Campos do Jordão, como aquela gravura esverdeada, com a efígie do Kaiser José II que um dia observava silenciosamente a nossa casa, com seus olhos céticos e benevolentes, e que era como um santo protetor de nosso lar. Seus olhos tinham uma expressão semelhante à dos olhos de minha avó e eu esperava que, embora esverdeado pelo tempo, ele ainda pudesse nos proteger [...]. (Krausz 2011: 22)

    Nesse armário estavam guardados aquilo que ligava os antigos donos à cultura do Império Austro-Húngaro, no século XIX. Esses objetos podem apresentar graus de importância de acordo com a relação afetiva que o portador tinha com seus donos anteriores. Nesse sentido, « A relação afetiva com um ente querido aparece como uma alavanca para a conservação de certos objetos definidos como herança de família que podem ser apresentados, de forma mais ampla, como portadores de história familiar[6]» (Ramos 2005: 46).

    Os pertences que o protagonista mantinha sob sua guarda são portadores de sua memória familiar. Essas memorábilias, embora não tivessem mais uma função social, atuam como dispositivos que trazem à tona memórias adormecidas. Assim, o deslocamento até o bairro Nova São Paulo, metaforicamente, também era o deslocamento para sua interioridade, onde se encontrava o que ele tinha de mais valioso, suas recordações.

    Quando vivos, os avós de Krausz, como muitos imigrantes europeus, buscavam reproduzir no Brasil a cultura que haviam abandonado. Assim, os objetos decorativos, a biblioteca e os eventos sociais serviam como simulacros dos tempos imperiais. Hábitos do cotidiano, a língua alemã falada em casa, os serviçais provenientes de colônias alemãs, os convidados austro-húngaros dos chás da tarde, tudo era pensado no sentido de aproximá-los de uma pátria que somente existia em suas lembranças.

    Essa necessidade de ostentar hábitos e cercar-se de tudo que os lembrasse de Viena, nos seus dias de glória, gerava uma expectativa nas gerações futuras:

    Dessa maneira, uma efígie do kaiser, que foi benevolente com os judeus no Império Austro-Húngaro, no século XVIII (Le Rider 2013: 11) é ressignificada. O narrador enfatiza a condição « esverdeada » da gravura, por certo se tratava de um dos objetos que foram trazidos pelos avós quando vieram para o Brasil. Longe de sua terra natal, séculos depois, ele ainda mantinha algum sentido graças à transmissão geracional: « O processo de hibridação cultural gera algo diferente, algo novo e irreconhecível, uma nova área de negociação de sentido e representação. » (Rutherford 1996: 37). Nessa perspectiva, os sentimentos do protagonista se distanciam da significação que os avós davam ao monarca, ainda que permanecesse na esfera do sagrado. As lembranças afetivas que lhes são associadas superam o seu estado de má conservação; por isso, a efígie ainda não tinha sido descartada. É possível perceber, na ressignificação da efígie do Kaiser, o funcionamento da pós-memória familiar na mediação e na transformação das memórias das gerações anteriores vinculada às imagens e aos objetos concretos (Hirsch 2012: 41).

    Mas a prosperidade permanecia nas mesas de bridge e nos chás da tarde de minha avó, onde só era permitido falar alemão à mesa e de onde até mesmo minha irmã e eu éramos banidos por uma hierarquia silenciosa, que nos obrigava a nos contentar com os restos que Lotte trazia da sala de jantar, depois que as visitas tivessem terminado, e com o chá frio e amargo que restava no fundo do bule.

    Sonhávamos com o dia em que poderíamos partilhar daquela mesa, que era aos nossos olhos como a reunião dos doze apóstolos, e temíamos, mais que tudo, que aquele dia não chegasse nunca. “As visitas” era o nome que se dava àquelas pessoas especialmente arrumadas, para as quais se preparavam, sob os nossos olhares invejosos, pratos que não comíamos nos dias comuns. As visitas estão chegando. As visitas. As visitas. Tudo o que se relacionava com essas criaturas míticas, que atravessavam devagar o jardim, raspando os saltos altos no mosaico português que levava do portão das visitas até a porta das visitas, em pequenas comitivas, envoltas por um halo de perfume, por sedas italianas e por uma nuvem de palavras pronunciadas num alemão antigo, redolente a Biedermeier e Stefan Zweig [...]. (Krausz 2011: 85-86)

    Os avós do protagonista tinham-se por exilados do Império Austro-Húngaro, que foi dissolvido com o fim da Primeira Guerra (Hobsbawm 1995); contudo, eles mantinham vivas a cultura e a língua alemã, consideradas de prestígio no século XIX. Isso demonstra um anacronismo entre a cultura preservada nas diásporas e a usual na Áustria e na Alemanha moderna; nesse sentido, a cultura que o protagonista tem acesso na infância é a que ele teve contato mediante os avós, portanto, anacrônica e idealizada. As histórias felizes e os grandes eventos familiares estão sempre associados ao continente europeu. Esses eventos conferiam valor e sentido à vida daqueles imigrantes, tanto aos que recebiam quanto aos recepcionados. Pode-se considerar essas situações como fazendo parte de um processo de transferência às gerações futuras, em que o passado é internalizado, mas carece de compreensão (Hirsch 2012: 31).

    Nesse sentido, a crença de que a cultura alemã era harmônica e organizada foi transmitida ao protagonista pelos avós — ou seja, pela perspectiva de pessoas que nutriam um sentimento nostálgico sobre o próprio passado. Isso fazia com que ele desejasse fazer parte desse mundo, e não medisse esforços para que isso acontecesse:<

    Os eventos sociais, como os chás da tarde promovidos pela avó, apresentavam-se como um rito permitido somente àqueles que compartilhassem da mesma origem e história. Para o personagem, a comoção familiar que a recepção das « visitas » gerava dava-lhes um ar sacralizado. No entanto, naquela época o personagem desconhecia que a cultura prestigiada na sua família eram os vestígios de uma pátria metafísica[7].

    Todas as mortificações às quais eu me submetia tinham como único objetivo me tornar apto a entrar, outra vez, naquela terra prometida da qual, por algum motivo inexplicável, designado simplesmente pela palavra Krieg [exílio], meus avós, como adão e Eva, tinham sido expulsos. E eu observava com atenção concentrada cada detalhe ínfimo das suas existências, cada gesto e cada palavra, cada expressão facial e cada peça de vestuário deles e dos seus amigos que frequentavam nossa casa [...] (Krausz 2011: 113).

    O cotidiano familiar também era prenhe de ritos. Embora reclusos no casarão, e recebendo somente pessoas do mesmo grupo social, as notícias do mundo exterior chegavam a eles por intermédio de jornais e revistas:

    Na Era Dourada dos Jornais, todos os dias, depois do almoço e do cafezinho, meus avós se sentavam em volta da mesa da sala para ler O Estado de S. Paulo. O silêncio só era interrompido ante alguma notícia particularmente escandalosa ou revoltante: meu avô não conseguia conter a indignação, e expirava o ar entre a língua e o palato, fazendo um longo “tssss...”. [...] Havia algo comovente na fé com que eles liam ali, e como aqueles assuntos ecoavam, depois, nas conversas telefônicas e às vezes até à noitinha, quando a família se reunia à volta daquela mesma mesa, para tomar uísque com Salzstangerln (Krausz 2011: 20).

    A relação que os avós e os pais tinham com a cultura brasileira influenciou o protagonista. Para ele, a distância que os separava dos brasileiros era um abismo, o qual não tinham a intenção de transpor:

    O protagonista, quando criança, apresenta-se como espectador da rotina dos avós, em que os menores hábitos não passavam despercebidos ao olhar infantil. Pela ritualidade e a frequência diária, também pela afetividade, os hábitos familiares são lembrados e ficcionalizados no romance.

    Minha avó olhava para os que viviam do outro lado dos abismos com curiosidade, complacência, pena. Mas não os entendia, nós também não. Buscávamos, ávidos, tudo o que, vindo da Europa, pudesse nos salvar de nos tornarmos assim. Porém as fronteiras estavam sempre em movimento e eu nunca sabia exatamente onde se encontravam. Na verdade, elas iam se fechando sobre mim, de todos os lados. Aqui eram os Ostjuden e lá os que eram ricos demais ou pobres demais ou estúpidos demais (Krausz 2011: 84).

    O narrador, ao lembrar das tardes ensolaradas no casarão de Campos de Jordão, quando criança, faz referência ao desejo de escrever um romance judeo-alemão:

    Dessa maneira, os objetos guardados no armário e o apartamento não foram as únicas coisas herdadas dos avós pelo protagonista. Os sentimentos de não pertencimento e de entre-lugar também afligem o protagonista. De acordo com Hirsch (2012: 31), a pós-memória não é idêntica às memórias dos antepassados; porém, há uma aproximação entre a afetividade e seus efeitos psíquicos. Como um exemplar híbrido, o protagonista se sentia entre fronteiras: desejava viver na Europa, mas devia se conformar com sua vida no Brasil. Ele se via, em alguns momentos, como aqueles « [...] exemplares degenerados de uma espécie mestiça » (Krausz 2011: 117) que os avós e os pais desprezavam.

    Sonhava, ali, com um romance judeo-alemão que fosse o romance dos romances, aquele livro imaginário que era a quintessência de todos os seus contemporâneos e predecessores, um frasco em que estivessem concentrados os perfumes de todas as plantas do bem tratado jardim de nossa Bildung. Ficava em algum ponto da Europa a nossa Jerusalém celeste — uma Jerusalém que era um mundo de ordem e de decência de limpeza e de civilização. (Krausz 2011: 56-57)

    Trata-se de um indício metaficcional do que o escritor Krausz tem realizado com a sua produção literária. Em seus romances, o escritor coloca em relação as histórias de vida de vários judeus-austríacos e alemães imigrantes, os quais nesse excerto ele se refere de modo metafórico. Além disso, ratifica-se aqui que o romance é uma produção, embora com base na memória, ficcional, ou seja, um investimento imaginativo.

    Deserto

    Em Deserto, a intriga está centrada nas impressões que o protagonista tem sobre os parentes judeus de outras diásporas judaicas que ele vem a conhecer. A fim de narrar suas impressões, o autor-narrador se utiliza de sua imaginação, o que se torna evidente ao fantasiar um jantar com seu tio-bisavô Richard, em Israel, ocorrido durante uma viagem com a sua família, quando ainda era criança:

    No romance Deserto, o narrador, já adulto, conta sua experiência sobre a viagem que havia feito a Israel e à Inglaterra, na década de 1970, quando tinha seus 16 anos. O protagonista vivencia a vida em um kibutz, no entanto, a narrativa inicia-se quando ele conclui essa experiência, que é retomada por meio do recurso da analepse. Do mesmo modo, ele faz referência à participação de um shabat na casa de seu tio-avô Kalman e a compra de suas passagens para a Inglaterra. No entanto, o ponto alto do romance não é a vivência do kibutz — desejo de alguns descendentes judeus diaspóricos —, o que o narrador logo explicita. Participar do intercâmbio patrocinado pela sociedade judaica de São Paulo foi apenas um estratagema para estar mais próximo da Europa, tanto que era proibido aos participantes do intercâmbio de saírem de Israel, o que o protagonista fez com o consentimento da família.

    Anos antes, quando viajara a Israel com meus pais, nós o tínhamos encontrado e ele convidara a família toda para um almoço no Hotel Dan, sobre o mar, desfazendo assim um pouco daquilo que a guerra tinha sido. [...] Na minha lembrança, com a qual eu brincava enquanto o Leyland com sua efígie de tigre sobre o radiador ia devorando a estrada para Tel Aviv, era uma mesa muito longa, com muitos comensais. (Krausz 2013: 16-17)

    Ainda nessa pequena ficção dentro da ficção, o protagonista imagina a conversa dos adultos e suas impressões sobre o que estava sendo discutido à mesa. Desse modo, o narrador reproduz a visão que alguns estrangeiros tinham sobre o Brasil:

    A cena é imaginada enquanto o protagonista está no ônibus que vai do Kibutz à cidade de Tel Aviv. No jantar fabulado, havia muitos familiares já falecidos e outros que moravam em países europeus; ou seja, a ficcionalização se apresenta como uma estratégia do autor-narrador para apresentar a genealogia do lado paterno. Durante sua exposição, ele introduz biografemas (Barthes 2003) sobre os comensais. Essas informações a respeito de pessoas que ele nunca conheceria, pois alguns já eram falecidos antes de seu nascimento, somente poderiam ter lhe chegado por intermédio da transmissão intergeracional.

    À frente de todos eles, meu tio-bisavó presidia à mesa, minha irmã e eu, admirados com todas aquelas presenças, comemos em silêncio enquanto meus pais conversavam em alemão com os outros convivas e tentavam lhes explicar como eram as nossas vidas naquele planeta distante chamado Brasil, do qual se imaginava que os macacos andavam à solta em ruas cercadas pela mata virgem e pelas doenças tropicais, para não falar das cobras e de outros animais selvagens (Krausz 2013: 18).

    O fato de a família de Krausz evitar a aproximação do que fosse tipicamente brasileiro é por uma questão cultural, e não devido aos perigos que a fauna e a flora brasileira poderiam apresentar. Assim, o narrador faz uma alusão ao comportamento e aos valores familiares que orientavam a família: « [...] nosso tio-bisavô tentava imaginar como poderia ser a vida de seu sobrinho e de sua família num casarão de muros altos que deixavam o Brasil do lado de fora, enquanto nós sorvíamos silenciosamente uma sopa vermelha, temperada com páprica. » (Krausz 2013: 18). A reclusão familiar era o modo encontrado para resguardar a cultura e as tradições europeias e não se deixarem influenciar pelos costumes brasileiros. Em Deserto, a questão da integração dos avós e pais à sociedade brasileira é retomada, assim como em toda a produção literária de Krausz.

    Além do tio-bisavô Richard, o protagonista encontra-se com o tio-avô Kalman durante sua estadia em Tel Aviv. Este tio o ligava às suas origens Ostjuden (judeus da Europa Oriental) por parte do lado materno; porém, a comunicação entre eles era difícil: « O tio-avô Kalman e eu nos comunicávamos em iídiche, ainda que eu não soubesse realmente falar a língua. Na verdade, ele se dirigia a mim em iídiche e, àquilo que eu compreendia, eu respondia em alemão, tratando de impregnar minha pronúncia com as inflexões do iídiche, às quais eu me acostumara na casa de minha avó materna [...]. » (Krausz 2013: 34).

    O plurilinguismo se apresenta como uma característica da geração pós-memorial de judeus exilados. Por causa da convivência diária com os avós paternos, o protagonista conseguia, aos 16 anos, compreender e falar o alemão de forma razoável: « Não seria capaz de ler em alemão o livro de Kafka porque o alemão que eu conhecia era apenas a linguagem doméstica da conversa com meus avós e com meu pai, e ainda assim era, a cada tanto, sujeito a correções abruptas de uma gramática que eu não conhecia e que me deixavam constrangido e envergonhado. » (Krausz 2013: 36).

    No entanto, o mesmo não ocorria com o iídiche, a língua falada pela avó materna. Na família Krausz, a cultura alemã — e nisto inclui a língua — era a cultivada, de modo que o protagonista se esforçava para adquirir os conhecimentos valorizados pelos avós paternos, em detrimento da cultura da Europa Oriental, mais próxima do judaísmo ortodoxo, proporcionado pelo lado materno, o que incluía o iídiche. Por isso, ao não conseguir a fluência desejada em alemão, o protagonista estuda o francês, idioma tão prestigiado quanto o alemão no que concerne à cultura europeia. Dessa maneira, na questão linguística, o protagonista por si só encontra uma terceira via para lidar com as dificuldades impostas por suas origens étnicas.

    A participação do shabat na casa do tio-avô Kalman revela o trauma da Shoah e do exílio na vida dos judeus:

    Os europeus, influenciados pelas impressões dos viajantes dos séculos XVI ao XX referentes à América do Sul, acreditavam que o território brasileiro era uma concentração de mata nativa e animais selvagens. O que pode ser verdade quanto ao interior do país, na década de 1970, mas não condiz com a cidade de São Paulo — cidade de maior aglomeração urbana do país. É nesta cidade que os pais e avós do protagonista habitavam.

    Em B’nei Brak, os apartamentos se apinhavam e cada vizinha sabia exatamente o que se estava cozinhando na panela da outra, e ainda assim um estranho vazio pairava em cada um dos apartamentos, como se de cada família tivesse sido arrancado, ainda há pouco, um membro querido, cuja saudade ocupava um espaço imenso e não deixava lugar para mais nada. Nem as distrações mundanas, nem o fascínio da cultura europeia ocupavam o lugar da lembrança daqueles lugares que não existiam mais, de onde tinham escapado, dos amontoados de escombros e de cinzas. Era o mesmo vazio que eu conhecia dos domingos à tarde em meio às paredes nuas e cor de gelo do apartamento de minha avó materna, onde sempre se parecia estar à espera de um convidado que não chegaria, era essa mesma pátria da ausência que se instalara em todos os lugares onde viviam refugiados do sthetl [em ídiche, “cidadezinha”. Por esse nome eram conhecidas as aldeias judaicas do Leste Europeu] em chamas e em cinzas. (Krausz 2013: 22)

    A alusão à vizinhança não é somente pela proximidade física de coabitarem no mesmo bairro e por serem judeus, mas também porque partilham de um mesmo passado e destino. Dessa maneira, estabeleceu-se uma comunhão que estreitou os laços entre eles, não somente com os refugiados em Israel, mas também com todos aqueles que migraram para outros países. É esse sentimento de perda e de vazio deixado pelos não sobreviventes a que o narrador se refere como « pátria da ausência ». De acordo com Benedict Anderson (1989: 14), a comunhão possibilita uma comunidade imaginada na qual nunca se conhecerá todos os seus participantes, mas todos têm conhecimento de sua comunhão. Nesse sentido, a ausência é mais um elo entre os refugiados judeus. Naquele período histórico, qual judeu não teria perdido amigos e entes queridos na Shoah?

    O narrador que também faz parte da comunidade judaica alude à sua percepção sobre essa ausência. Embora ele não tivesse conhecido os antepassados que foram exterminados, ele leva consigo o mesmo sentimento de vazio, de ausência, de perda. Assim, a familiaridade da situação vivenciada naquele momento o faz lembrar de sua própria família, especificamente da casa de sua avó materna, refugiada do Leste Europeu no Brasil, como aqueles que moravam no bairro pobre em Tel Aviv. Mesmo que nada fosse dito e imperasse o silêncio, os traços da ausência se fazem sentir nas paredes nuas — sem retratos de familiares — de cor gelo. Seria uma tentativa de esquecer os dias tenebrosos que marcaram a história judaica de forma indelével? No entanto, por mais que se fizesse para esquecer os que sucumbiram, na tentativa vã de apagar a memória física, a espera contínua de um convidado que nunca chegaria era pressentida pelo narrador quando criança. Nesse sentido, é o comportamento dos tios e da avó materna percebido pelo garoto que transmite a memória familiar da ausência, ou ao menos é isso o que ele projeta. A fabulação dá novos contornos às suas lembranças, a tal ponto que essas se tornam material criativo. Como já citado, Marianne Hirsch (2012: 5) afirma que a relação do passado com a pós-memória é assegurada pela projeção, criação e investimentos imaginativos.

    Em Israel, enquanto os judeus provindos das regiões da Europa Oriental se resignavam ao seu destino de refugiados pobres, sem a realização das promessas sionistas, os judeus austro-húngaros partilhavam de uma cultura que havia se estagnado no tempo. Uma cultura familiar ao autor-narrador, visto que era a mesma cultuada por seus avós paternos no Brasil, de modo que ele se sentia mais confortável, diferente do estranhamento que havia sentido na casa do tio de sua mãe no bairro B’nei Brak.

    Onkel Richard estava numa situação econômica mais favorável que o tio Kalman. Ele morava num bairro nobre em Tel Aviv, viajava com frequência para a Europa e era uma pessoa importante na comunidade judaica de imigrantes austro-húngaros. Esse tio simbolizava o imigrante culto, próspero e feliz, exatamente o que o protagonista almejava ser no futuro.

    A estada na casa de seu tio-bisavô Richard acaba por ser um período de transição necessário para o autor-narrador, assim como foi para Ulisses, na Odisseia, os três dias na Ilha dos Feácios antes de chegar a Ítaca:

    B’nei Brak tratava-se de um bairro popular em Tel Aviv onde os judeus pobres se instalaram quando migraram para Israel. Krausz alude, de forma metafórica, à pouca privacidade das famílias judias instaladas no prédio quando faz referência à proximidade dos apartamentos, a ponto de esses serem invadidos pelos aromas. No entanto, isso não impedia que houvesse a percepção de um vazio deixado pela lembrança daqueles que não sobreviveram à Shoah — um estranho vazio que nunca seria ocupado. Independentemente para onde fossem os refugiados judeus, o vazio imenso instalado em suas vidas era levado com eles.

    A agonia de uma cultura era algo que eu ainda não era capaz de compreender e sequer de imaginar: se o Onkel Richard era, assim como Max Zweig, uma das estrelas naquela constelação de expatriados de língua alemã em Tel Aviv, eu tinha certeza de que encontraria em Londres a continuação ininterrupta daquele mundo que, como espécie de conto de fadas, como uma ilha dos bem-aventurados feaces, se constituíra em torno da figura do Kaiser Franz Joseph. Tinha certeza de que encontraria em Londres a continuidade e não a nostalgia, o sentir-se perfeitamente em casa e não o exotismo de um lugar no Oriente. (Krausz 2013: 53)

    Em Londres, o protagonista conhece a prima de sua avó-paterna e seu esposo. Ao contrário do que esperava, o casal também vivia de acordo com os ditames do período do império austro-húngaro no recesso de seu lar. Como seus avós, em casa, falavam alemão e recebiam para o chá da tarde outros imigrantes como eles. Além disso, eles apreciavam a música erudita, como grande parte dos judeus austro-húngaros burgueses. Quando exilados, eles continuaram a ouvir e a transmitir às gerações futuras o gosto por óperas e músicas de câmara. Assim, no escritório ficava, além dos livros de escritores alemães e austríacos, a coleção de discos. Esse ambiente da casa, onde o protagonista foi instalado durante sua estadia, era o refúgio do primo Eugen. Ali, junto aos objetos que o lembram de sua pátria metafísica, ele passava os dias a ler e a ouvir música:

    De certa forma, o autor-narrador compara os expatriados do Império Austro-Húngaro com os feácios, e ele, com o herói grego, que após viver um período distante, apartado da civilização ocidental, é reinserido à sua cultura. André Malta, na análise do excerto de Odisseia, refere-se a esse momento de transição de Ulisses: «De certa maneira, esse movimento de “transposição” — de um ambiente bruto em direção a um comedido — experimentado pelos feácios parece reproduzir aquele agora vivido por Odisseu, habilitando-os, assim, a se encarregarem da “reinserção” do herói no mundo civilizado. » (Malta 2017).

    O gosto musical da casa da prima Wally e do primo Eugen era determinado por aquela singular constelação entre a Áustria e a Alemanha que fazia da letra B, de Bach, Beethoven, Brahms e Bruckner a mais importante do alfabeto, seguida pelo M de Mozart, Mendelssohn e Mahler e pelo S de Schubert e Schumann. (Krausz 2013: 110).

    A preferência musical dos imigrantes austro-húngaros compreende compositores e músicos dos séculos XVIII e XIX, período em que se deu início ao processo de integração dos judeus no Império Austríaco, e aqueles que pretendiam fazer parte da sociedade burguesa da época, era de bom tom refinar o gosto musical. Com base nos estudos de Bourdieu, Luís Mauro Sá Martino considera que:

    O gosto é geralmente fruto de uma relação social, regido e regulado dentro de um conjunto de ações sociais anteriores, dotado, por força dessas relações, de um valor de apresentação, uma espécie de “valor de troca simbólica” condicionado pela intersecção entre o conhecimento social existente, a motivação prévia e as condições.

    Considerado o “mais espiritual” dos gostos, a preferência por um determinado tipo de música mostra, em linhas gerais, o efeito dessa racionalização do uso de bens simbólicos. (Martino 2009: 16).

    Quanto a mim, me habituara a considerar, talvez por influência de meu pai, que toda a música eslava — com a possível exceção de Dvorak, não obstante sua obsessão pelo nacionalismo tcheco — era uma espécie de fanfarra ou de pastiche, ou alguma forma de arte excessivamente edulcorada e afetada (Krausz 2013: 114).

    Além dos músicos aclamados, na coleção dos Wally, havia discos de músicos judeus que, devido ao genocídio cometido pelos nazistas, nunca atingiriam a notoriedade. Esses discos eram mantidos na prateleira inferior da estante, atrás de um sofá.

    Uma possibilidade de leitura para a sala-refúgio do tio Eugen é de que ela representa, de modo simbólico, a sua memória. Dessa forma, aquilo que não estava visível na estante, que intencionalmente se encontrava na última prateleira, eram vestígios de uma vida que gostaria de esquecer, de memórias recalcadas, como sua origem judaica. Nos capítulos que tratam da estadia do protagonista em Londres, o primo Eugen é descrito como depressivo, talvez como consequência da má-adaptação ao país estrangeiro.

    O fato de encontrar-se longe de sua terra natal afeta a cada emigrado de uma forma diferente. Alguns, embora pareçam integrados ao novo espaço, e até levem uma vida confortável, sofrem com o distanciamento da terra de origem. No entanto, essa distância não é somente física, mas também temporal.

    Portanto, os judeus-austríacos situados no Brasil e aqueles em Israel e Londres, apesar de estarem em diferentes países, preservam as mesmas tradições, os quais consideram como sinais de distinção (Bourdieu 2007) e elos de ligação a uma pátria que não existe mais. Este é o principal legado que eles transmitiram às gerações futuras: a melancolia e a nostalgia por um período da história que não retornará.

    O protagonista, como seus familiares, cultivava o gosto pela música erudita porque assim lhe tinha sido transmitido, inclusive, com juízos de valor:

    Considerações finais

    No momento que ele institucionaliza essas memórias, registrando-as, elas deixam de ser memória comunicativa para fazerem parte da memória cultural judaica diaspórica. É por meio da ficção que o escritor Krausz recompõe as memórias em ruínas da sua família e de outros judeus. O gênero romance de filiação, mediante a autoficção, é profícuo na reconstrução dessa memória familiar.

    Assim, no romance Desterro: memória em ruínas, vemos a reconstrução de uma pátria metafísica por meio de pertences dos avós, que o protagonista mantinha sob sua guarda. No romance Deserto, são as recordações de sua primeira viagem sozinho ao exterior que serve de contexto para reconstruir suas impressões sobre os judeus que se refugiaram em outros países.

    O protagonista observa o quanto os judeus austro-húngaros, independentemente do país em que tenham se instalado, padecem do mal do exílio; ou seja, são acometidos de melancolia, sentimentos de não pertencimento e entre-lugar. Nesse sentido, tanto os judeus no Brasil quanto na Inglaterra e em Israel reconstroem uma pátria metafísica como alento para suportar a distância física e temporal de seu lugar de origem.

    A idealização dessa pátria tem repercussão nas gerações futuras, como ocorreu com o protagonista, neto de judeus imigrantes do extinto Império Austro-Húngaro. A convivência familiar e a absorção dessas memórias exílicas fazem com que o jovem Krausz tenha ideia fixa sobre uma Europa anacrônica que os avós descrevem a ele. Por consequência, embora tenha nascido no Brasil, parece não reconhecer a cultura brasileira como parte de sua identidade, e parte em busca do sentir-se perfeitamente em casa. No seu entendimento, isso somente ocorreria no continente europeu. Pode-se inferir de que nos romances há uma crítica quanto à cisão entre as culturas austro-alemã e brasileira, de modo que as gerações seguintes se sentem num entre-lugar. Dessa maneira, a perda do sentimento de pertença e segurança que afligia os avós é legado às gerações seguintes, representadas pelo protagonista.

    Portanto, são as memórias afetivas transmitidas ao neto que, por sua vez, tornam-se pós-memória, pois a relação com o passado não se dará da mesma forma (Hirsch 2012: 35). Ele passa a desejar profundamente pertencer àquela pátria metafísica, onde impera a ordem e a harmonia. No entanto, somente anos mais tarde compreenderá que se trata de um sonho inatingível, pois esse lugar sempre estará drüben, isto é, do outro lado.

    A escritura de Luis S. Krausz tem por base as memórias familiares e as da comunidade de exilados judeus no Brasil e em outros países, como Israel e Inglaterra, que são os espaços representados nos dois romances que iniciam sua produção literária. Para referendar a análise efetuada dessa memória intergeracional, o conceito de pós-memória de Marianne Hirsch se apresentou adequado, visto que o autor fez um investimento imaginativo para transmitir experiências vivenciadas para a própria geração e as futuras.

     

     

    Bibliografia

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     Notas

    [1] O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil (Capes) — Código de Financiamento 001.

    [2] Todas as citações das obras estrangeiras foram traduzidas pela autora deste artigo.

    [3] Texto original: « […] une meurtrissure que l’expérience exilique partage avec tout phénomène traumatique. »

    [4] Texto original: « “Postmemory” describes the relationship that the “generation after” bears to the personal, collective, and cultural trauma of those who came before—to experiences they “remember” only by means of the stories, images, and behaviors among which they grew up. But these experiences were transmitted to them so deeply and affectively as to seem to constitute memories in their own right. Postmemory’s connection to the past is thus actually mediated not by recall but by imaginative investment, projection, and creation. »

    [5] Texto original: « Il sait bien, lui qui a partagé quelques années avec le disparu, que celui-ci a eu des émotions, des sentiments, des désirs, des projets, des échecs ou des frustrations. Dont il est, lui qui reste, l’héritier. Aussi doit-il, à son tour, se situer dans cette histoire dont il est le produit. »

    [6] Texto original: « La relation affective à un proche apparaît comme un levier de la conservation de certains objets définis comme objets de famille qui peuvent être présentés, plus largement, comme porteurs de l’histoire familiale. »

    [7] Para Krausz, a pátria metafísica é a extinta monarquia austro-húngara à qual exilados e imigrantes judeus-austro-húngaros projetam uma série de idealizações (Krausz, 2006).

    Pour citer cet article

    Référence électronique
    Simone Luciano Vargas, « Ruínas recompostas e pós-memória nos romances de Luis S. Krausz », Conceφtos [En ligne], 1 | 2020, mis en ligne le 21 décembre 2020. URL https://ameriber.u-bordeaux-montaigne.fr/fr/revue-conceptos/numeros-en-ligne/microfiction-microficcion/ruinas-recompostas-e-pos-memoria-nos-romances-de-luis-s-krausz.html